domingo, 10 de janeiro de 2016

Doce desafio: confetaria

Criadores de sobremesas contam histórias de como é difícil aventurar-se na confeitaria




Sobremesa sem exatidão é mero acaso. Mas mesmo que criá-las tenha muitos encantos, na verdade, é bem mais difícil do que parece. Isso porque, se em receitas salgadas é possível improvisar, o “se vira” simplesmente não existe na hora do doce. Quem impera na confeitaria é a matemática.

O desafio é o melhor amigo do confeiteiro. E a frustração sempre manda lembranças. Não há um chef que não tenha uma boa história para contar – uma infinidade de testes, ideias geniais que não se concretizam na panela e muita dor de cabeça.
Na hora da criação, algumas regrinhas básicas ajudam, segundo Patrícia Cavalcanti, hoje à frente do Califórnia Coffee: “sobremesa, pra mim, tem que seguir um princípio: ter um elemento cremoso, um crocante e uma surpresa, já que se presta a um momento especial. Claro que isso não garante nada. Posso pensar em 30 novas receitas salgadas por dia, mas com doce não funciona assim”, afirma a chef.
Entre os clássicos, o rigor parece até exagero, mas não é. Em um macarron, por exemplo, poucos gramas a mais ou a menos podem ser a diferença entre o suspiro crescer ou não no forno. É como explica o chef paulistano Diego Barreto, professor do Senac e chef da empresa Think Macarrons: “Por menor que seja, uma mudança na receita pode significar a ruína do prato”. Não à toa, a balança é um dos instrumentos mais importantes dos confeiteiros.
E, se repetir um clássico já é difícil, imagine o trabalho que dá uma sobremesa completamente autoral. Para criá-las, o chef deve ter traços peculiares, desde a criatividade e um certo pendor artístico (afinal, quem quer um doce que seja feio?) até ser detalhista e metódico. E, claro, ter muita paciência para se chegar ao equilíbrio perfeito de sabores.
Na prática, isso quer dizer muitos testes. São incontáveis experiências, como provar o mesmo doce diariamente por três meses seguidos, mudando poucos detalhes para, enfim, se chegar ao resultado pretendido. Foi o que aconteceu com o chef Ari Kespers, comandante do Provence Cottage Bistrô, em Monte Verde, cidade turística no Sul de Minas. Até se dar por satisfeito com a musse de coco com doce de abóbora e tuile de rapadura, ele quase desistiu dela várias vezes. “No fim, já não aguentávamos mais comer a mesma coisa todos os dias, mas acabou valendo a pena”, diz o chef.
E quem trabalha só com doces tem que encarar esses testes com bom humor, como explica a chef confeiteira Luana Drummond, da Doce que Seja Doce. “Os testes são uma fase importante na elaboração da receita. Dá trabalho, mas é muito legal ir criando e percebendo os sabores, as texturas. Muitas vezes, mudando algum detalhe simples, você descobre novas coisas”, afirma, com empolgação. A quatro mãos, com o chef Henrique Gilberto, ela criou o “bolo da Belo”, um mamute de 8 kg de chocolate belga que marcou tanto a carreira dela que foi parar em sua pele – a chef tem a receita tatuada no braço.
Às vezes, o problema surge de onde menos se espera. A chef Patrícia Cavalcanti relembra a dor de cabeça que foi criar a musse de flor de laranjeira com calda de frutas vermelhas. O que à primeira vista poderia parecer o mais difícil – a musse de flor – chegou ao ponto certo em alguns testes. E o que parecia trivial – a calda de frutas vermelhas – atrapalhou o processo e atrasou a conclusão da receita. “Ela simplesmente não chegava ao ponto que eu queria”, diz ela.
Um bolo que mudou a vida da criadora

FOTO: UARLEN VALERIO
Gastro - Magazine - Belo Horizonte - Minas Gerais

Doce que seja Doce.
bolo de chocolate recheado.
chef Luana Drummond.

foto: Uarlen Valerio/ O Tempo - 20150713
Este não é um bolo comum, ele pesa 8 kg e marcou época em BH
Era para ser um bolo de banana. Nos primeiros testes, a ideia foi prontamente trocada pela de um bolo de cenoura. No fim, acabou saindo de chocolate mesmo. Mas esse não é um bolo comum – ele pesa 8 kg e marcou época recentemente em Belo Horizonte. Quem não se lembra do famoso “bolo de chocolate da Belo Comidaria”? Ele ficou conhecido assim, mas hoje, mesmo depois do fim do restaurante, continua fazendo sucesso. É que uma de suas criadoras, a confeiteira Luana Drummond, segue vendendo o petardo na Doce que Seja Doce, loja que ela montou depois de sair do restaurante.
A criação, ela conta, foi a quatro mãos, com o chef Henrique Gilberto. Ele viu em Nova York uma confeitaria que fazia bolos gigantescos, servido em pedaços não menos generosos. A ideia foi trazida antes da abertura das portas da Belo, e, até chegarem à receita final, foram três meses de trabalho para afinar os detalhes. “Em, cada experiência, descobria um sabor novo. Foi muito legal conseguir chegar a o que a gente queria: um bolo rústico, com gosto de chocolate intenso, mas sem ser enjoativo”, diz ela.
O resultado: camadas alternadas de massa de chocolate de 70% de cacau, recheada com ganache de chocolate 60% e ganache de caramelo belga – e uma criação marcante. “Hoje, vejo como o bolo foi importante. Além de passar a ser mais conhecida, ganhei credibilidade. Muita gente chega até a loja por causa dele. Não foi à toa que tatuei a receita”, comenta, aos risos, a confeiteira. 
A dificuldade de onde menos se espera

FOTO: LEO FONTES / O TEMPO
Magazine - Belo Horizonte, Mg. Gastro. Historias de sobremesas. Mousse de flores com calda de frutas vermelhas da chefe Patricia Cavalcanti. Fotos: Leo Fontes / O Tempo - 14.7.15
Mousse de flores com calda de frutas vermelhas da chefe Patricia Cavalcanti
Foi partindo dessa premissa que ela pensou na musse de flor de laranjeira. “Nunca tinha visto nada igual, mas comecei os testes e gostei. Primeiro, deixei as flores de molho no creme para que ele pegasse aquele perfume delicado. O meu medo era que ficasse enjoativo”, diz ela. Foram só mais alguns testes até descobrir o ponto de equilíbrio: oito horas de molho e pouco açúcar. Transformar isso em musse só foi possível com tecnologia: assim como o chef Ari Kespers, ela apelou para o uso de sifão.
Pensar em um acompanhamento para o aroma de flores é que deu trabalho: nos testes com laranja, calda de açúcar queimado e, por fim, frutas vermelhas, venceram as últimas. O problema foi chegar ao ponto da calda: não tão mole que virasse só uma cobertura, não tão dura como caramelo. “Queria um ponto intermediário, mas quem disse que conseguia? Por incrível que pareça, foi o que me deu mais trabalho na sobremesa inteira. Fiz e refiz a tal da calda incontáveis vezes, trocando quantidades, tempos, até que finalmente cheguei ao ponto que queria. Em confeitaria, é preciso saber exatamente o que se quer”, diz ela.
Para acertar a estética do prato

FOTO: MARIELA GUIMARAES / O TEMPO
Magazine - Gastro - Especial - Belo Horizonte MG
Historias de sobremesas
Strudel desconstruido preparado pela chef Samira Lyrio do restaurante Flores

FOTO: MARIELA GUIMARAES / O TEMPO 22.7.2015
Strudel desconstruído da chef Samira Lyrio, do restaurante Flores 
Para montar o cardápio do restaurante Flores, a chef Samira Lyrio exercita a criatividade ininterruptamente – é que a casa muda suas sugestões semanalmente, obrigando a sua comandante a criar pelo menos duas sobremesas a cada sete dias (isso, sem contar as entradas e pratos principais).
Nessa rotina agitada, sobra pouco tempo para se dedicar a apenas uma receita. Mas quando a chef imagina algum novo sabor, é difícil desistir dele. Foi o que aconteceu com o strudel desconstruído de pera.
Chegar ao equilíbrio de sabores, ela conta, foi até relativamente fácil. Problema mesmo foi atingir a textura e acertar o aspecto visual da sobremesa. “A parte mais trabalhosa foi fazer um caramelo mais durinho, que suportasse as camadas de massa philo e o doce de pera. Ajustar os ingredientes e as quantidades foi o truque, mas chegar até aí não foi fácil”, diz ela.
Estreia no Salão do Livro de Paris
O caminho entre o projeto original e a musse de coco com doce de abóbora e tuile de rapadura é que foi duro, como conta o chef Ari Kespers. “Um dia, acrescentei melaço de cana no biscoito e ficou tão bom que me deu vontade de fazer uma sobremesa com ele”, relembra o chef. “Não sabia no que estava me metendo”, completa ele, aos risos.
O primeiro passo foi acertar a receita da bolachinha rústica, transformada em um tuile delicado. Um mês depois, a etapa estava vencida, mas a dúvida persistia: com o que servir?
A resposta surgiu de uma lembrança de infância – doce de coco e abóbora da casa da avó. Aos poucos, ela foi tomando forma. De um lado, a tradição do doce de abóbora, sequinho por fora, macio por dentro. De outro, tecnologia: uma espuma de coco preparada no sifão – equipamento que ficou famoso com os experimentos moleculares do chef catalão Ferran Adrià.
Com sobremesa é assim: a cada etapa, um novo desafio. E cabe ao chef responder a eles com criatividade. “Foram muitas pequenas dores de cabeça que se somaram. A musse com o leite de coco industrializado ficou horrível. Tivemos, então, de prepará-lo na própria cozinha. Mas aí surge outra questão: como fazer isso? Um teste vai puxando outros”, comenta Ari.

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