domingo, 10 de janeiro de 2016

Levando os sabores do Pará na bagagem

A chef e documentarista Maria Caramêz, provisoriamente em BH, viaja o país divulgando a culinária da sua terra natal


Na capital mineira, a paraense Maria Caramêz, 52, vem fazendo história. Diretora de cinema, documentarista e, mais recentemente, chef, ela fez de Belo Horizonte um dos seus lares temporários e atualmente também um dos principais destinos dos seus jantares secretos. Estes têm esse nome porque acontecem sem qualquer divulgação comercial e funcionam a partir do boca a boca. 
Assim, ela tem circulado pelo país com o projeto de gastronomia itinerante Oca de Maní, que é baseado na riqueza da culinária do Pará. Para onde vai, Caramêz leva na mala uma série de ingredientes fundamentais para produzir todos os menus criados por ela. São eles o tucupi, o jambu, a pupunha, além das polpas de frutas típicas da região, como açaí, cupuaçu, bacuri, muruci, entre outras. As combinações são muitas e dependem da escolha do cardápio, composto de entrada, prato principal e sobremesa. Esses arranjos podem ser decididos antes ou permanecer como um elemento- surpresa.
“O jantar secreto é uma proposta de encontro e pode ser associado a um menu que não é revelado previamente. Mas, nesse caso, a gente pede que as pessoas preencham uma ficha dizendo se têm alguma intolerância alimentar para que eu não sirva algo que alguém não possa comer”, pontua a chef. Essa iniciativa, embora tenha sido concebida em 2014, ganhou corpo, de fato, após uma viagem ao Peru e depois à Europa, onde ela se dedicou, em 2015, a um ano sabático, visitando Portugal, Itália, França e Inglaterra, ao lado do marido, sócio e assistente, Manuel Leite.

“Nós desenvolvemos a Oca de Maní em 2014, mas eu amadureci a ideia a ponto de encarar a realização desse projeto em 2015. Eu já cozinho há muito tempo, desde os 19 anos, porém fazer um jantar informalmente, atendendo pedidos de amigos que te chamam, às vezes, para preparar as refeições num aniversário, é diferente de vender um produto. Você tem que estar muito segura, e essas viagens foram importantes para eu alcançar isso”, diz.
Ela conta que, nesse período, visitou diversos restaurantes, alguns, inclusive, destacados pelo “Guia Michelin”. “À medida que eu provava as comidas, eu fui me testando. Às vezes, eu provava um prato, achava uma delícia, mas dizia para mim mesma: eu posso fazer igual ou melhor. Aos poucos, então, eu vi que era capaz de realmente servir algo de qualidade, e, quando retornei ao Brasil, comecei a fazer os jantares secretos de uma maneira mais formal. Isso, por outro lado, não é nenhuma novidade, e na Europa, por exemplo, é algo que acontece desde a década de 90. Mas eles são tão secretos que quase ninguém fica sabendo”, observa.
A partir desse trabalho, Caramêz nota fazer parte de um circuito interessado em promover a gastronomia e a cultura amazônica no Brasil e no mundo. Como referência de profissionais, ela cita o chef Paulo Martins (1946-2010) que é reverenciado como um dos maiores entusiastas da culinária praticada no Norte do país. “A gastronomia paraense já deu um passo grande, vem continuamente sendo reconhecida e difundida no nosso país, e eu me sinto, de certa forma, pupila de Paulo Martins, que acreditou muito na cozinha paraense e amazônica. Acho que a atenção que temos hoje para esse universo é fruto do empenho de pessoas como ele”.
Ao mesmo tempo em que busca apresentar e recriar pratos tradicionais encontrados na sua terra natal, ela afirma que por onde passa também costuma fazer experiências. Em Belo Horizonte, por exemplo, Caramêz já cozinhou joelho de porco com tucupi e aprovou o resultado. De acordo com ela, em breve, devem surgir mais novidades. “Eu estou conversando com uma amiga daqui, que também é chef, e nós queremos fazer algumas brincadeiras. Uma delas é o pão de queijo ou o pastel de angu recheado com jambu. Queremos propor esse diálogo”, afirma ela, que foi apelidada pelos mineiros mais próximos de “bruxa do tucupi”. “A comida tem esse poder de encantar as pessoas e de fazer elas viajarem”.
 
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Fusão. Em seus jantares secretos, Maria Caramêz põe em prática receitas em que busca aproximar a culinária tradicional paraense de outras referências da gastronomia internacional. Um exemplo é a entrada Vol Au Vent, de consomé de caranguejo, que é feito com ingredientes básicos: farinha d’água, leite e caranguejo catado trazido de Bragança, município do Pará.
 
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Troca. Uma das criações mais difundidas da culinária paraense é o risoto de pato com tucupi e jambu. Neste prato, Caramêz adapta a receita substituindo a ave pelos camarões. Nessa versão, ela utiliza o arroz tipo bomba, especial para fazer paellas. Mas ela comenta que, no dia a dia das famílias paraenses, essa mesma comida é feita com arroz comum, o que também dá bom resultado.
 
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Doce. Uma das sobremesas dos banquetes de Caramêz é a tartelete de castanha-do-pará com creme e doce de cupuaçu. A iguaria, contudo, não é especialidade dela. A responsável por essa parte é a sua nora, Lunna Rosa, que fez o curso de pâtisserie em SP e comanda produção de receitas escolhidas para a última etapa da experiência gastronômica.
Entre jantares, documentários e memórias

Embora o seu nome completo seja Maria Zienhe Caramêz de Castro, a chef e documentarista raramente se apresenta assim. “Sabia que eu sou duas?”, indaga ela, que em seguida afirma se inspirar nos heterônimos criados pelo poeta Fernando Pessoa. À frente do projeto de gastronomia itinerante Oca de Maní, ela é Maria Caramêz. Já na direção de filmes, como “Ervas e Saberes da Floresta”, que foi produzido em 2011, a partir de um prêmio conferido pelo Programa Petrobras Cultural, ela assina como Zienhe de Castro.

‘A Maria Caramêz é como se fosse um novo personagem que eu assumi agora que passei a me envolver com a culinária profissionalmente, e também é uma homenagem a minha origem, que em parte é espanhola”, diz.

Multifacetada, ela ressalta que a gastronomia surgiu na sua vida enquanto aprofundava as pesquisas sobre os saberes populares existentes na região Norte, a exemplo da atuação das erveiras do Pará e dos produtores de farinha, entre eles o mestre Bené. Ele é o personagem de um documentário, com o nome provisório de “Deixa Eu Lhe Dizer”, que Caramêz pretende lançar em breve num dos seus jantares secretos. Além disso, ela conta estar produzindo um livro de memória, batizado “O Banquete de Jacira” e que é dedicado a sua mãe. “Ela é a minha grande inspiração”, completa.

Apesar de buscar separar cada uma dessas áreas, Caramêz parece se aprofundar num encontro de fronteiras, cujo vértice se apoia no interesse pela cultura da Amazônia. “Foi o cinema que me levou para esse lado”, diz.

Um divisor de águas na sua vida foi a realização de “Ervas e Saberes da Floresta”. De acordo com ela, foi a partir desse projeto que a sua relação com a gastronomia amazônica se fortaleceu. “Esse filme me levou a um mergulho numa Amazônia que eu tinha deixado para trás aos 8 anos de idade. Nessa época, eu viajava com meu pai, que tinha uma espécie de mercadinho flutuante, levando medicamentos, produtos da cidade e trazendo todas aqueles insumos da floresta. De repente, tudo aquilo veio muito forte, profundo, mexeu muito comigo. Desde então, eu comecei a trilhar uma nova jornada de paixão, levando a cultura, a gastronomia e o cinema paraense para outros lugares do nosso país”, sublinha.

Paralelamente, essas reflexões a aproximaram também da literatura. “O Banquete de Jacira”, obra em processo, se nutre de suas memórias e também de boas doses de ficção. “Eu imagino um livro em que cada capítulo traz um conto, uma história e uma receita”, explica ela, que tem como mote a relação afetiva que possui com a comida. “Eu pretendo recordar receitas de família e falar da minha infância num casa que tinha um quintal que parecia um grande zoológico”. 

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