segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Doce e picante que ficou amargo

 

Produto típico de Bento Rodrigues, distrito destruído por rompimento de barragem, a geleia de pimenta-biquinho estava em vias de ganhar o mundo e hoje é uma raridade; chefs da Cantina Piacenza e do Xapuri reviveram o produto na criação de novos pratos


A iguaria típica de Bento Rodrigues se tornou parte da sua identidade. O nome do distrito, antes pouco conhecido, passou a ser levado para outros Estados inscrito no pote da geleia em letras miúdas. O produto, vermelhinho sem nenhum tipo de corante e de textura fluida, definitivamente, agradou.
A produtora Keila Vardele Fialho dos Santos, 32, mentora da ideia, se orgulha: “Todo mundo que ia lá no Bento e que conhecia a nossa associação se apaixonava e voltava. Acho que, pela força de vontade que a gente tinha de vencer, todo mundo gostava da gente”.

Junto a outras sete mulheres e dois homens, ela se encarregou de adequar o prédio utilizado antes para a produção de verduras em conserva. Os próprios produtores cuidaram para que a elaboração da geleia estivesse dentro dos conformes. “Era a gente que fazia tudo, inclusive serviço de servente de pedreiro pra arrumar o prédio, readequar. Ninguém tinha preguiça de trabalhar”, lembra.
Depois de conseguir o selo da Anvisa e ter o espaço readequado, a geleia já estava em vias de ser vendida em grandes redes de supermercados, além de já ser comercializada em outros Estados e no Mercado Central, em Belo Horizonte. Mas o rompimento da barragem de Fundão, que devastou Bento Rodrigues, interrompeu o trabalho de quase dez anos.
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“A nossa associação de produção de geleia de pimenta-biquinho era o nosso xodó. A gente não precisava depender de marido, era o nosso trabalho. O que a gente quer é que eles (a Samarco, empresa responsável pela tragédia) consigam um espaço e os equipamentos como tínhamos lá, para continuarmos o nosso trabalho”, diz.
Segundo ela, foi possível salvar cerca de 700 garrafas PET cheias de pimenta-biquinho, totalizando cerca de mil quilos do fruto. Conservadas na salmoura, elas têm uma vida útil de até dois anos. “Dá pra trabalhar muito ainda”, espera Keila Vardele.
Cobertura tragedia rompimento barragem Fundao
Quando o estoque acabar, no entanto, a produtora não sabe como vai continuar tocando a associação, já que a produção dependia da colheita da biquinho que brotava diretamente da terra de Bento Rodrigues, que não existe mais.

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Relíquia. Além da matéria-prima em estoque, os produtores da associação de pimenta-biquinho de Bento Rodrigues conseguiram salvar 26 caixas de geleia com 24 potes em cada uma. Cada pote era vendido por R$ 7 antes da tragédia. Hoje, é possível encontrar a geleia por R$ 15 em lojas especializadas em pimentas no Mercado Central.

Um pote na mão, uma ideia na cabeça

O chef Americo Piacenza, da Cantina Piacenza, e o chef Flávio Trombino, do restaurante Xapuri, toparam o desafio e apresentaram propostas distintas e deliciosas.

Piacenza decidiu usar a geleia para criar um molho agridoce a ser servido com um fagotini de queijo minas. O prato, que pode ser incorporado ao cardápio de Natal, ainda não é comercializado no estabelecimento, mas já agradou a quem experimentou.

“Antes de chegar a essa receita, pensei em fazer um terrine ou um javali, que também combinam muito bem com o agridoce, mas achei que o queijo minas ia dialogar mais com essa história. E no Natal já tem muita carne também, por isso pensei no diferencial da massa”, explica.

Além da geleia, a receita também utiliza a pimenta-biquinho fresca, alecrim, queijo minas e ricota, além de uma fusão de vinho, cebola e manteiga.

A cantina também já foi ponto de recolhimento de doações. A solidariedade a Bento Rodrigues foi a principal motivação para a criação de uma receita utilizando um produto original do distrito.

“Eu tinha até um certo preconceito em relação ao uso da pimenta-biquinho em conserva no vinagre ou em forma de geleia, por ser uma pimenta de sabor bem delicado e por achar que ela deveria ser explorada fresca. Mas essa geleia de Bento Rodrigues me surpreendeu por causa do sabor”, conta Américo. 

Uma geleia e as várias formas de usá-la 

O chef Flávio Trombino, do Xapuri, preferiu aproveitar a geleia de pimenta-biquinho de Bento Rodrigues sem retoques. Ela acompanhou os bolinhos de banana-da-terra com carne-seca criados por ele. “Esse bolinho foi extinto do cardápio, mas eu costumo fazê-lo em ocasiões especiais, em eventos, por exemplo. Ele combina muito com o sabor agridoce da geleia de pimenta”, explica.
FOTO: Cesar Tropia 29.8.2005
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Originalmente, os bolinhos eram acompanhados de geleia de pimenta dedo-de-moça, mas a experiência com a de biquinho não poderia ter dado mais certo.

“A pimenta-biquinho é a que tem menos ardência, perdendo só para o pimentão. Em uma escala de 0 a 10 em termos de grau de picância, ela está entre 0 e 1”, diz. E é isso que torna o sabor da geleia feita com a biquinho mais suave e puro, sem a necessidade de utilizar muitos outros ingredientes para amenizar a ardência. Trombino também divaga sobre outras possíveis aplicações da geleia, inclusive em pratos doces.

“Temos um bolinho de mandioca com muçarela que também cairia muito bem com essa geleia. Uma carne de barriga de porco também combinaria muito com esse sabor agridoce. De sobremesa, a gente poderia criar, por exemplo, um cheese cake com geleia de pimenta-biquinho”, conta.

Arte perdida. O Xapuri utiliza prioritariamente produtos próprios artesanais, mas alguns ingredientes têm passe livre para serem trazidos de outros lugares e incorporados às receitas. Um deles é o melaço de Crispim, produzido há pelo menos seis gerações em Santa Cruz do Escalvado, cidade localizada a cerca de 120 quilômetros de Bento Rodrigues, que também sente os efeitos do grave acidente ambiental. “Esse é o melhor melaço que eu já experimentei, por isso trouxe para cá. É uma arte. Ele tem o gosto puro de rapadura. A cidade não recebeu a lama diretamente, mas já sofre com os efeitos dela”, explica.

Ele conta que o comércio na cidade está enfraquecido. “Muitos produtores ali compravam produtos em distritos vizinhos e já nãos os encontram mais. Há dificuldade de acesso para o transporte de mercadorias e produtos. O melaço mesmo provavelmente vai encarecer, vai ficar mais difícil de encontrar. A produção artesanal dessa iguaria pode estar prejudicada”.

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